quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Florilégio (2)

Filatelia e Literatura



Continuando a construção da minha antologia...

"— Don Pablo — sentenciou com voz transcendente, — trago-lhe uma carta.
O poeta saboreou um gole do seu penetrante café e encolheu os ombros.
— Sendo tu carteiro, não me admira.
— Como amigo, vizinho e camarada, peço-lhe que ma abra e ma leia.
— Que te leia uma carta minha?
— Sim, porque é da mãe de Beatriz.
Colocou-lha em cima da mesa, afiada como uma adaga.
— A mãe de Beatriz escreve-me a mim? Aqui há gato. E a propósito, fez-me lembrar a minha Ode ao gato. Ainda penso que há três imagens redimíveis. O gato como mínimo tigre de salão, como a polícia secreta das salas, e como o sultão das telhas eróticas.
— Poeta, hoje não estou para metáforas. A carta, por favor.
Ao rasgar o envelope com a faca da manteiga, procedeu com tão involuntária imperícia que a operação excedeu o minuto. «Têm razão as pessoas quando dizem que a vingança é o prazer dos deuses», pensou, enquanto se detinha a estudar o selo colado na face do envelope, considerando cada pêlo da barba do ilustre que o animava, e simulava decifrar o imperscrutável carimbo do posto dos correios de San António, partindo uma estaladiça migalha de pão que se havia impregnado ainda na posse do remetente. Nenhum mestre do cinema policial teria deixado o carteiro em semelhante suspense. Órfão de unhas, mordeu uma a uma as pontas dos dedos.
O poeta começou a ler a mensagem com a mesma cadência com que dramatizava os seus versos" (Skármeta 1996: 74-75)

Referências bibliográficas
SKÁRMETA, A. (1996) O Carteiro de Pablo Neruda. Lisboa: Editorial Teorema.

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