segunda-feira, 13 de abril de 2020

Tintim e a leitura dos clássicos

1. “Um clássico é um livro que nunca acabou de dizer o que tem a dizer.” (Calvino, 2015: 11)

No álbum As Joias de Castafiore, os nossos heróis estão enclausurados em Moulinsart. Não devido à ação insidiosa de algum vírus, mas antes porque a mobilidade do capitão é reduzida, consequência de uma queda, o que o deixa confinado a uma cadeira de rodas.
Sem o ritmo trepidante da narrativa de outros álbuns, neste saboreamos a comédia clássica, representada como num teatro, dentro de portas. Para os miúdos, porém, este não terá sido, certamente, um dos álbuns preferidos. Apesar dos hilariantes mal-entendidos e da resistência da diva em acertar com os nomes dos seus interlocutores, a imaginação da criançada fugia invariavelmente para os lugares exóticos e as viagens sem fim.
Há dias, enquanto me dedicava com desvelo a As Joias..., quatro vinhetas no fundo da página 43 adquiriram um inesperado interesse. Pela manhã, Tintim e Haddock leem ambos um livro, enquanto o pianista da cantora lírica executa de forma repetitiva as suas escalas. De súbito, os gritos de Castafiore anunciam o desaparecimento da sua esmeralda.


Que leem os nossos heróis? No caso de Haddock, impossível discernir. Nas mãos de Tintim, porém, parece possível identificar o clássico de Stevenson, L'île au Trésor (A Ilha do Tesouro).

2. “Um clássico é um livro que vem antes de outros clássicos; mas quem leu primeiro os outros e depois lê esse, reconhece logo o seu lugar na genealogia.” (Calvino, 2015: 14)

O romance do escritor escocês chegou à minha mesa de leitura já adulto. O reconhecimento do "seu lugar na genealogia" foi imediato. As escunas, as ilhas tropicais, os mapas do tesouro (X marks the spot) e os piratas de perna de pau com o papagaio ao ombro, tudo encaixou no devido lugar.

O estribilho rouco dos piratas, "Lou-ou-ou e uma garrafa de rum!", nos filmes, nos livros, nos álbuns de Hergé, tinha finalmente encontrado a sua paternidade.

3. Num tempo em que tudo é calibrado pelo crivo da utilidade, lá virá a inevitável pergunta: «para que serve tudo isto?» Respondo, tomando de empréstimo uma citação em segunda mão de Cioran: «Enquanto lhe preparavam a cicuta, Sócrates pôs-se a aprender uma ária na flauta. “Para que te servirá?” perguntaram-lhe. “Para saber esta ária antes de morrer”».” (Calvino, 2016: 16).

CALVINO, I. (2015) Porquê Ler os Clássicos? Alfragide: Publicações Dom Quixote.

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