domingo, 15 de julho de 2012

Jornal de Parede "Filatelia"

Em dezembro de 2008, fiz um pequeno apontamento sobre a revista filatélica Selos em Angola, publicada entre 1970 e 1975. 
Proponho-me divulgar agora outro título editado na colónia entre 1969 e 1971, que tive a felicidade de adquirir num leilão filatélico recente. A publicação em apreço é o jornal de parede Filatelia editado pelos Serviços do Comissariado Provincial da Mocidade Portuguesa. Terão sido editados nove números deste jornal: cinco em 69, dois em 70 e dois em 71. 
Nestes nove números, o Departamento Filatélico da Ala nº 1 - Luanda da Mocidade Portuguesa promove a Filatelia junto dos jovens. Para além da publicação de regulamentos como sejam, por exemplo o "Regulamento Filatélico da Mocidade Portuguesa" ou o "Regulamento das colecções da «Classe Juventude»", é possível encontrar, entre outros, verbetes do chamado "Dicionário Filatélico", notícias sobre exposições, notícias sobre as emissões de selos mais recentes e sobre marcofilia e ainda uma secção com anúncios destinados ao intercâmbio filatélico. 
Para ilustrar este post, apresento um exemplar do primeiro número da publicação referenciada (dimensões - 47,5 mm x 35 mm):

Fig. 1 - 1969, Filatelia, Jornal de Parede nº 1

segunda-feira, 2 de julho de 2012

A Estação Postal do Muié

Secretas vêm, cheias de memória
                                     Eugénio de Andrade

1. Introdução

O verso em epígrafe pertence a um célebre poema de Eugénio de Andrade, intitulado "As Palavras". Ajusta-se como uma luva a um desses felizes acasos em que é fértil o colecionismo de peças de História Postal. De facto, por vezes, os objetos de correspondência apresentam diferentes camadas de sentido que exigem discursos paralelos, mas complementares. Assim, se, por um lado, privilegiamos o discurso sobre as relações entre os diferentes elementos associados às correspondências manipuladas pelos correios, não podemos, por outro lado, ignorar os textos inclusos nessas correspondências, na medida em que podem ser úteis para a caraterização do sistema de crenças, de valores e das representações de um grupo numa dada época.
Vem esta reflexão a propósito de uma carta e respetivo texto enviados de Angola para os EUA:

Fig. 1 - Ceres filigranados - Sobrescrito circulado do Muié (3/1/938), com trânsito pelo Moxico (10 JAN 1938) e Lobito (ilegível), para Bangor, Ma., USA, com 2 selos de 80C e 15C, perfazendo 1$75, correspondentes ao 1º porte de uma carta para o Estrangeiro. Inscrição manuscrita "Vapore Belgica".

Fig. 2 - Muié
2. Missionários protestantes no Muié

A carta é enviada pela missionária americana Daisy S. Pearson (ver Fig. 4) que se encontrava em atividade na Missão Protestante do Muié. No verso da carta pode observar-se o carimbo utilizado pelo marido: EMIL PEARSON / MISSÃO DO MUIE / CANGAMBA, MOXICO, ANGOLA / PORTUGUESE WEST AFRICA". Estes dados podem ainda ser confirmados pela entrevista concedida por Robert Wesley Brain, o qual testemunha a permanência do casal Pearson na Missão do Muié:

"BRAIN: I know Mr. Pearson [Emil] was teaching there and his daughter Edla was teaching, and Mrs. Pearson [Daisy]."                                                                                             

Também o Anuário do Império Colonial Português (1940: 116) atesta o trabalho como missionários do Rev. Emil Pearson e de Daisy Pearson na Missão protestante do Muié.
O texto da missiva enviada por Daisy Pearson comprova a informação acima apresentada e acrescenta ainda um puzzle em sentido literal e figurado à nossa narrativa.
Reproduz-se em seguida, na íntegra, o texto a que vimos aludindo:

Fig. 3 - Pág. 1 da carta enviada por Daisy Pearson
"Missão do Muie
Cangamba, Luchazes
Angola, Portuguese
                                                     West Africa
Dec. 30th
Dear Miss Nowell:
Last night my two daugthers were putting a puzzle to-gether [sic], called “Spring” and turning it one found your name. I thought you might be interested in knowing that it had reached this part of the world.
We are very isolated, 1000 miles inland, but enjoy our work for the Lord Jesus Christ. My husband and I came here as bride and groom in 1920 and five months ago returned after our second furlough. My home was in Philadelphia and my husband’s in Minesota.
This is just to tell you of your puzzle being in our home here. 
Yours truly 
Fig. 4 - Pág. 4 da carta enviada por Daisy Pearson
Daisy S. Pearson
(Ms. Emil)"

O texto tem evidente interesse por vários motivos.
Em primeiro lugar, porque permite conhecer as atividades do casal enquanto missionários, dando conta de duas estadias no Muié: a primeira data de 1920 e a segunda de 1937-1938 (referência ao decurso de 5 meses desde o regresso). Não tendo tido ainda acesso à data de fundação da Missão do Muié, a referência a uma passagem do casal pela Missão em 1920 é de extrema utilidade para balizar provisoriamente o seu funcionamento.
Em segundo lugar, porque o texto testemunha o isolamento experienciado pela missionária e as atividades lúdicas propostas às duas filhas do casal, as quais, em última instância motivam o envio da carta.
A carta é endereçada a Bessie J. Nowell (1886 ou 1887-1946) cujos puzzles, a partir dos anos trinta, eram vendidos nos EUA com grande sucesso. O tema do puzzle mencionado na carta é "A Primavera". Trata-se de um título bastante comum em puzzles da época, podendo estar associado a imagens diferentes. 

Fig. 5 - Puzzle da autoria de Bessie J. Nowell
Segundo a historiadora Anne Williams, especialista em puzzles antigos e conterrânea de Nowell, as imagens usadas para fazer puzzles tinham várias proveniências. Podia usar, por exemplo calendários, que eram colados a placas de cartão e posteriormente serrados usando uma serra de recorte.
O puzzle poderá ter sido adquirido nos EUA e levado para Angola. De referir que Bangor fica no estado do Main, distando mais de 1000 Km da cidade de Filadélfia na qual residia o casal Pearson.

3. A Estação Postal do Muié

De acordo com Mário Milheiros (1972: 210), o posto administrativo do Muié, da Circunscrição de Luchazes, Distrito do Moxico foi primitivamente chamado de Posto militar de Carimboe, tendo tido sede na região de Carimboe, na margem direita do rio Chicolui. Em 1923, pela portaria 133-A de 10 de Julho (B.O. 43) foi transferida para o local onde se encontra atualmente.
Segundo Granado (1948:249), o "clima é bastante razoável" e o solo é "relativamente fértil", produzindo nomeadamente milho, feijão, massambala e amendoim. Como principais produtos de comércio, são também referidos os seguintes produtos: cera, peles de caça fina, gado bovino e suino e peixe seco. É referida a existência de muita e variada caça.
A localidade é servida por estrada para a sede da Circunscrição em Vila Camgamba (112 Km) e para Cangombe (90 Km).
Fig. 6 - Criação da Estação postal do Muié

A Estação Postal de 3ª classe do Muié é criada pela Portaria n. 2402 de 11 de Setembro de 1937 (ver Fig. 6). A estação postal do Muié fica autorizada a desempenhar os serviços de venda de selos postais e de permuta de correspondência ordinária e registada. Para a emissão de vales e receção de encomendas a estação mais próxima é a de Vila Luso.
Por motivos desconhecidos, pelo menos nos anos de 1938 e 1939 - não observei objetos postais datados de 1937, mas admito que existam -, nas correspondências provenientes do Muié, os selos postais são sujeitos a obliteração manuscrita. Possivelmente, a administração postal do território não terá disponibilizado um carimbo, o que terá levado os funcionários da estação a recorrer à obliteração manuscrita das correspondências.
As figuras seguintes ilustram a utilização deste tipo de obliteração nos anos de 1938 e 1939:
Fig. 7 - Obliteração manuscrita do Muié
Fig. 8 -  Sobrescrito circulado de Muié (12/03/939) para os EUA com trânsito por Luchazes (20/03/39), Moxico (06.04.39) e Lobito (08.03.1939). Pagou de porte 1$80, sendo o porte devido 1$75 (Cortesia de Elder Correia)


4. Observações finais  

À semelhança das duas filhas do casal Pearson, também o colecionador busca a felicidade pueril da (re)construção de um puzzle. Utilizando fragmentos do passado, persegue incessantemente a transformação do outrora em agora. Nesse instante final, em que as peças parecem encaixar umas nas outras, sorri e agradece, reconhecido, a lembrança de Daisy Pearson. 

Referências bibliográficas:
Emprêsa do Anuário Comercial (1940) Anuário do Império Colonial Português (2ª ed). Emprêsa do Anuário Comercial por contrato com a Agência Geral das Colónias.
Granado, A. (1948) Dicionário Corográfico-Comercial de Angola Antonito, 2ª Edição, Luanda: Edições Antonito.
Milheiros, M. (1972) Índice Histórico-Corográfico de Angola. Local: Instituto de Investigação Científica de Angola.

Webgrafia:
http://www2.wheaton.edu/bgc/archives/trans/252t01.htm (Collection 252 - Robert Wesley Brain. T1 Transcript. Billy Graham Center Archives, consultada em 2/07/2012, às 22.13 h)


Nota: Agradeço a informação prestada pelos amigos Elder Correia e Acácio Luz, a qual facilitou muito a redação deste texto.

Péssima ideia viajar como encomenda...

Talvez não tivesse sido necessário escutar um conto deliciosamente perverso de Lou Reed narrado por John Cale com voz de locutor de rádio p...